terça-feira, 8 de setembro de 2009

Corpo e Dança na Educação Infantil, por Isabel Marques

* Isabel Marques é diretora do Instituto Caleidos e do Caleidos Cia. de Dança, em São Paulo, capital.


Quero neste texto discutir com vocês e levantar questões sobre o papel da dança na Educação Infantil e como ela pode favorecer a construção de um corpo lúdico, crítico, voltado para a cidadania contemporânea.

Antes de passarmos à dança propriamente dita, quero primeiro deslocar nossos olhares para os principais atores da Educação Infantil: os alunos e os professores e suas relações com a dança.

Como professores, aprendemos que, para trabalhar com a dança na escola, é interessante conhecermos os alunos, seus corpos, suas danças. Sabemos que, partindo e trabalhando a realidade corporal dos alunos podemos também trabalhar com o universo sócio-cultural dos mesmos e, assim, estabelecer relações críticas com a sociedade em que vivemos.

Acima de tudo, para que nossa proposta pedagógica na área de dança seja consistente e transformadora, quero sugerir que precisamos conhecer também os conceitos, os sonhos, o imaginário das crianças a respeito da arte da dança. O que é dança para elas? Com que danças se identificam?

Que mundo imaginário a dança traz para elas? Por exemplo: os alunos sabem/gostam das danças da mídia? Ou preferem as danças brasileiras que aprenderam com os adultos em festas populares? Os alunos acham que dançar é fazer balé? Sonham em se tornar uma Ana Botafogo, ou seja, uma bailarina famosa? Que visão os meninos têm da dança? Trazem de casa preconceitos e/ou frases prontas do tipo “dança é coisa de mulher”? E assim por diante.

Raramente, no entanto, paramos para olhar para nossos próprios corpos de professores, para as danças que dançamos, para os conceitos, sonhos e desejos que temos em relação à dança. Quantas professoras, quando meninas, sonharam em fazer dança e foram privadas desta possibilidade por razões econômicas, corporais ou morais? Quantas de nós adoraria sair para dançar toda semana, mas não sai?

Reclamamos, muitas vezes, de que as crianças só gostam das danças da TV, de que estão “bitoladas” pela indústria cultural, de que não assistem outro tipo de dança. Mas, e nós, professores: que danças dançamos, assistimos, gostamos? Será que somente as crianças sucumbem ao poder universal e unilateral da mídia ou terminamos todos os domingos em frente à TV assistindo passivamente às bailarinas do Faustão? Fora da sala de aula, de nosso papel educador explícito, que relações temos com a arte da dança, com a produção cultural de nossa cidade e país? O que é dança para nós? Dança é mesmo “coisa de mulherzinha”?

Freqüentemente nos esquecemos de que nossos conceitos, práticas, escolhas e valores corporais e artísticos têm influência direta nas relações que estabelecemos com os alunos em sala de aula. Acima de tudo, o diálogo não-verbal que se estabelece diariamente entre professores e alunos é fruto destes conceitos, práticas e valores sobre o corpo e sobre o corpo que dança. Quero começar pela definição de dança na escola.

Para a maioria das crianças, e também para muitos professores, dança é sinônimo de “coreografia”, ou seja, de uma seqüência de movimentos interligados pela música. Se olharmos ao redor, é assim mesmo que a dança se apresenta para nós - das danças projetadas na TV às danças populares, passando pelos espetáculos de balé e pelos passos da dança de salão. Não podemos esquecer que hoje, até o carnaval, outrora sinônimo de “expressão individual”, está coreografado: as comissões de frente das escolas de samba e alguns trios elétricos, por exemplo, já estipulam passos, trajetórias, movimentos antes mesmo da festa começar.

O problema não está tanto neste conceito de dança, pois, afinal, a dança como arte é sim também um produto acabado que pode ser compartilhado com o público. Em situação pedagógica, no entanto, este conceito de dança é um tanto limitado e limitante pois, quando levamos estas danças “prontas” para a escola, resta às crianças simplesmente executarem a dança do adulto.

Sem dúvida nenhuma, uma dança pronta e bem acabadinha, todo mundo fazendo certinho e ao mesmo tempo, pode ser “bonito de ver”, mas estes são novamente os olhos do adulto sobre a criança. Para as crianças, as danças que chegam a seus corpos prontas e pré-determinadas (coreografias da TV, das danças populares, das professoras) não deixam espaço para que criem, brinquem, joguem com o corpo.

Não custa nada refletirmos novamente sobre o papel da escola na educação corporal e no aprendizado da arte. Que valores, conceitos, atitudes estamos trabalhando com as crianças se as faço repetir tudo que mando? Ou seja, para além da beleza estética “para mãe e diretora verem”, qual o papel da dança na escola em relação à formação do indivíduo, da construção da cidadania e da arte?

A dança, como área de conhecimento, permite uma leitura e uma releitura diferenciada de nós mesmos, dos outros e do mundo. Por meio do corpo que dança, estabelecemos relações com os sons, as imagens, as palavras e as narrativas que nos circundam e podemos dialogar com elas. Portanto, a dança cumpre um importante papel na educação do indivíduo/cidadã o crítico e transformador.

Nos últimos anos tenho trabalhado com uma abordagem para o ensino da dança que nomeei “a dança no contexto” (Marques, 2001). Esta abordagem tem como princípio básico a criação de redes de relações entre a dança, o indivíduo e a sociedade que nos cerca. Inter-relacionados, estes três aspectos do ensino-aprendizado da dança nos permitem ampliar e problematizar não somente os conceitos e as visões de dança estabelecidas, mas, sobretudo, repensar nossas práticas educacionais. Comecemos pelo vértice do indivíduo.

Conhecemos de longa data a importância do corpo na constituição do sujeito. A percepção cinestésica do mundo (via corpo em movimento) propiciada pela dança nos possibilita abrir caminhos de crescimento e comunicação que não necessitam, necessariamente, da linguagem oral. As crianças pequenas que conhecem, saboreiam e aprendem as possibilidades do corpo em movimento poderão sem dúvida estabelecer uma forma pessoal e diferenciada de estar no mundo. As sensações, o prazer e o desprazer, os gostos e desgostos também estão no corpo: (re)conhecê-los, saber fazer escolhas, comunicar-se com os outros faz parte da educação do corpo, pois o corpo é fonte de auto-conhecimento.

Seria muito simplório, no entanto, pensarmos o papel da dança na Educação Infantil hoje somente sob o prisma do indivíduo. Sabemos que o indivíduo se constitui como sujeito a partir das relações sociais que estabelece com o mundo, ou seja, o plano cultural, político e social estabelecem relações diretas com o ser, construindo seu corpo, seus hábitos, atitudes.

Nossas histórias estão marcadas no corpo, sejamos crianças ou adultos. Ou seja, nossas experiências ao longo da vida vão construindo o corpo e a forma de estarmos no mundo (Johnson, 1991). É por isso que dizemos que o corpo, biológico, é socialmente construído. Mas, como se dá a construção do corpo?

A forma como fomos embalados na primeira infância, o número de irmãos com quem tivemos de “compartilhar” nossos pais, a própria presença ou ausência dos pais; os amigos que tivemos, os parentes, a forma como nos relacionamos com desconhecidos nos ensinam atitudes corporais. Ou seja, as relações que estabelecemos com as pessoas são carregadas de valores, princípios, atitudes e afetos que incorporamos ao longo da vida e que constituem a forma como somos e estamos no mundo.

Do mesmo modo, as atividades corporais que experimentamos (brincadeiras, jogos, fazer arte, afazeres domésticos) vão construindo nosso corpo e fazendo com que nos relacionemos com a vida de formas diferentes. Pensemos, por exemplo, em crianças que desde tenra idade devem ajudar a mãe nos afazeres domésticos (atividade corporal regular, com regras, classificação etc); ou, ao contrário, aquelas que nunca se quer arrumaram os brinquedos. As crianças que têm oportunidade de expandirem seus corpos, correrem, pularem são bem diferentes daquelas que só ficam sentadinhas fazendo lição na mesinha. As primeiras, em geral, são crianças que percebem seu entorno de forma mais ampla, mais profunda e mais apurada e, portanto, estabelecem relações com os outros de forma mais significativa.

Não podemos nos esquecer, claro, dos espaços arquitetônicos que “ensinam” nos corpos, ou seja, nos ensinam a atuar no mundo. O tipo de casa em que vivemos (grande, pequena, sobrado, apartamento, condomínio etc), o prédio da escola (tamanho das salas, acesso aos brinquedos, parque, escadas etc), a possibilidade ou não de estar em espaços abertos fazem com que nossos corpos sejam construídos de formas bem distintas.

Em suma, o corpo, uma das fontes de comunicação com as pessoas e com o mundo não é somente nosso habitat, um instrumento para nos ajudar a dançar e a viver. Em outras palavras, nós não “temos” um corpo, nós “somos” o nosso corpo, corpo este construído a partir das relações que estabeleço comigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente. Portanto, a construção da cidadania passa, necessariamente, pela percepção e construção do corpo.

A dança, arte eminentemente corporal, é mais uma forma de construirmos o corpo e, portanto, de construirmos a cidadania que queremos. A partir das danças que dançamos introjetamos valores, atitudes e posturas diante dos outros e da vida. Em outras palavras, aquilo que aprendemos por meio das danças que praticamos é mais uma forma de estarmos no mundo e de construirmos a sociedade em que vivemos.

Aqui voltamos ao início deste texto: que indivíduos e que cidadãos estamos construindo se, na escola, fazemos com que as crianças somente repitam passos e danças criadas por adultos? Muito provavelmente corpos passivos, sem atitude, sem iniciativa, sem crítica, ou aquilo que Michel Foucault (1979) chamou de “corpos dóceis”. Opostamente a isso, se nos levarmos pelo impulso do laissez-faire, do deixar fazer livremente o que vier ao corpo e à cabeça das crianças, estamos trabalhando valores, atitudes e princípios também opostos: a criança egoísta, sem limites e/ou percepção do outro e do mundo.

Penso que seria interessante refletirmos a respeito da dança na escola sob outra perspectiva: sugerirmos danças que permitam às crianças brincarem, explorarem, improvisarem, enfim, criarem suas formas de ser e de estar no mundo a partir da orientação e do trabalho dialógico do professor.

Se estivermos de acordo que mandar executar movimentos e seqüências adultas prontas compromete vários aspectos da educação cidadã, vimos que o oposto disso, ou seja, colocar uma música e sugerir que as crianças “dancem livremente”, é também uma ilusão de educação. A idéia de que toda criança dança naturalmente, é espontânea e não tem condicionamentos corporais não passa de um romantismo ingênuo sobre o corpo em sociedade (Marques, 2003).

Quem já tentou fazer esta atividade e teve como resposta as danças codificadas da mídia ou movimentos adultos nos corpos das crianças, se deu conta de que as crianças não são “purinhas”. Ao contrário, elas estão contaminadas de sociedade, de cultura, de relações político-sociais. Os corpos das crianças são corpos sociais, únicos, claro, mas sociais: são como esponjas absorvendo seu meio ambiente, as relações, a cultura em torno.

Por outro lado, podemos pensar que as danças das crianças são um amálgama da classe, do gênero, da etnia e da religião a que pertencem. Ao professor cabe gerar, orientar e propor bases para que os alunos possam descobrir os elementos deste amálgama, redescobri-los de forma consciente e gerar suas próprias sínteses corporais. Ou seja, o que as crianças já sabem, vivem, saboreiam em seus corpos? O que podem inventar e reinventar a partir disso?

Há várias formas de sugerir às crianças que brinquem com seus corpos e inventem suas danças a partir de suas histórias corporais. A primeira delas é trabalhar com os próprios elementos da linguagem da dança: o espaço, o corpo, os ritmos, as ações corporais, os relacionamentos. Como seria uma dança somente no chão? Que movimentos o cotovelo pode fazer? Que formas os corpos ocupam no espaço? Como é dançar uma dança lenta com uma música rápida? E assim por diante.

Outra proposta geradora de dança é sugerir que os alunos observem movimentos ao redor: carros, liquidificador, esguicho, pessoas - que movimentos eles fazem? Por quê? Quando? Onde? Como refazê-los no corpo? Estas observações podem se estender para observação da própria dança, ou seja, da dança como arte do movimento a partir de vídeos, idas ao teatro, figuras.

O meio ambiente também é gerador de dança, pois oferece diferentes espaços para que os corpos possam se movimentar, expandirem-se, recolherem-se, locomoverem- se. Do mesmo modo, as relações com as pessoas, através do toque ou do olhar podem gerar danças únicas, próprias de cada um, de suas histórias passadas, presentes e futuras.

Dentro de uma concepção problematizadora da dança na Educação Infantil, hoje seria importante pensarmos o corpo que dança sob uma perspectiva lúdica, flexível, perceptiva e relacional. As danças que sugerimos em sala de aula devem permitir escolhas, olhares diferentes para os corpos, para os outros para o mundo. Desta forma, não estaremos educando corpos e indivíduos dóceis, mas sim corpos e indivíduos críticos, conscientes e transformadores.

Referências bibliográficas

Foucault, M. (1979). Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes.

Johnson, Don (1994). Corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Marques, I. (2001). Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez.
Marques, I. (2003). Dançando na escola. São Paulo: Cortez.

*Isabel Marques é diretora do Instituto Caleidos e do Caleidos Cia. de Dança, em São Paulo, capital.

Fonte: Sítio do Instituto Caleidos - www.caleidos.com.br
Linque: http://www.caleidos.com.br/canalcaleidos_artigos.html

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