domingo, 14 de dezembro de 2008

Histórias politicamente corretas auxiliam na educação das crianças?

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Disponível em http://www.sinprosp.org.br/reportagens_entrevistas.asp?especial=225
12 de dezembro de 2008


Em muitas escolas de São Paulo, o Lobo Mau, arquiinimigo da Chapeuzinho Vermelho, em vez de ser morto pelo caçador, acaba fugindo dele. E a vovozinha, antes de ser devorada pelo animal, fica, na verdade, presa no armário. Também músicas tradicionais e populares vêm sofrendo pequenas alterações. É o caso de versos como “Não atirei o pau no gato” e “boi da cara preta não pega essa criança que não tem medo de careta”.

Essas mudanças, no entanto, que procuram ser coerentes com discursos ditos politicamente corretos, são criticadas por alguns especialistas. Para o escritor Ilan Brenman, o intuito das licenças poéticas é justamente reduzir o grau de violência, agressividade e competição entre as crianças, a partir das obras literárias e das cantigas. “Segundo a pesquisa que realizei, pais e professores do Brasil inteiro começaram a adotar essas medidas imaginando que, ao reduzir o grau de agressão presente nas histórias, essa violência também se reduziria na vida real”, explica Brenman, que também é contador de histórias, além de ter defendido recentemente tese de doutorado sobre o assunto na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP).

No trabalho, orientado pela professora Hercília Tavares de Miranda e chamado de Emília: uma reflexão sobre a produção de livros politicamente corretos destinados às crianças, o autor assegura que, para desespero dos politicamente corretos, poupar as crianças das mazelas da vida nas obras de arte resulta no efeito contrário. Ou seja, impedir que a criança vivencie violência, morte, monstros e bruxas do mal no plano simbólico pode levá-la a querer experimentar tudo isso no plano real. Para o pesquisador, a boa literatura infantil e as cantigas tradicionais são a válvula de escape para que crianças lidem e trabalhem o lado sombrio, cruel, obscuro que todos os seres humanos têm por natureza.

Graduado em Psicologia, Brenman é um estudioso da relação entre infância e cultura e, ao longo de sua trajetória, marcada pela publicação de mais de 20 livros infantis, vem percebendo o temor e o terror dos adultos em lidar com temas que para os pequenos são comuns. “Veja o peso que os adultos dão para a morte. Em geral, as crianças lidam muito melhor com questões delicadas. Os adultos é que são cheios de interpretações e dificuldades”, sugere. Por isso, ao contrário do que muitos pais e professores pensam, trabalhar com assuntos chamados de cabeludos não incentiva ninguém a ser mais violento, ou mais cruel. O especialista diz que entende a preocupação em querer reduzir o grau de violência. Vivemos, afinal, num mundo cheio de pequenas e grandes tragédias causadas pelo excesso de agressividade das pessoas. Mas, garante, mora aí o primeiro contra-senso desse método de suavizar a literatura. “Eu trabalhei na antiga Febem, com menores infratores, durante muito tempo. E o que fez eles chegarem àquele lugar não foi o excesso de contato com a literatura infantil. Pelo contrário, quase nenhum deles teve larga experiência com a cultura”, conta o pesquisador. Ele entende que o que motivou a criminalidade nos menores, portanto, não foi a postura do Lobo Mau, ou o frágil amor relatado em Ciranda Cirandinha. “Foi a falta de família estruturada, escola de qualidade, pai e mãe presentes. Vamos portanto descriminalizar a literatura”.

Terceirização da educação
Há ainda uma segunda interpretação errada que pode ser feita. Segundo Brenman, os pais da sociedade atual terceirizaram a educação dos filhos para as escolas e estas, por sua vez, vêm terceirizando a educação para os livros. Portanto já não são os pais nem as escolas quem dizem o que é certo e o que não é, quem transmite os valores, quem cobra as posturas corretas, que estabelece limites, parâmetros e referências. Diante da crise geral de princípios da educação, a escola passou a acreditar que os livros seriam uma fonte mais confiável de inspiração – e aí acontece um engano com consequências complicadas. “A literatura não nasce para ensinar ninguém a nada. Nasce, como todas as formas de artes, da necessidade de expressão do artista, da necessidade de colocar no plano da realidade algum conteúdo que movia o artista naquele momento”, defende Brenman. Ou seja, a literatura até educa, mas não no sentido formal e mais rigoroso da expressão. Educa na medida em que faz as pessoas se encontrarem com as grandes questões da vida e da humanidade e não porque apresenta corretamente as lições que a escola quer passar. Não é para isso que ela serve, na visão do autor.

Por isso, a decisão que algumas escolas já tomaram de trocar as obras clássicas e modernas da boa literatura para crianças por pseudo-literatura já filtrada e que sirva para ensinar boas maneiras e boas relações com a diversidade não vai atingir o objetivo. “Não adianta culpar os livros pela violência da sociedade e nem combater essa violência com pseudo-literatura. O que sempre vai funcionar é família e escolas responsáveis pela educação, no sentido integral da palavra”, alerta Brenman, antes de levantar mais um problema gerado por esses livrinhos adotados atualmente. “O texto das obras politicamente corretas é pobre, o vocabulário é reduzido e, de um modo geral, as crianças são subestimadas. E o resultado é que a criança deixa de sentir cócegas na alma quando lê. E nem se educa, nem curte a leitura”, garante. Brenman lembra que isso que ele chama de cócegas na alma, o psicanalista Bruno Betelheim, autor de A psicanálise dos contos de fadas, classificava de histórias com algum perigo. Em contrapartida, as chamadas “histórias fora de perigo” são aquelas que não permitem o escoamento simbólico das forças, dos instintos, das pulsações que movem todo ser humano. Por isso, os ensinamentos que elas pretendem levar não conduzem à paz verdadeira – aquela que segundo Brenman contém as adversidades naturais da vida. “Levam a uma paz morta, a paz do cemitério, que não é decididamente aquela que devemos desejar”, explica o contador de histórias. Para ele, a linguagem dos livros e cantigas, essa sim, é uma ferramenta para a chamada boa educação. A criança que tem contato desde cedo com a linguagem ao mesmo tempo sofisticada e simples dos contos de fada, por exemplo, ou das melhores obras da literatura mundial conhece mais palavras, enriquece o léxico, e fala e pensa melhor. “E se ela se comunica melhor, pode resolver os problemas sem bater ou agredir”, defende Brenman.

Para concluir, o pesquisador da Universidade de São Paulo convida pais, mães e professores a entenderem o mundo da literatura infantil do ponto de vista da criança. Aquilo que os grandes chamam de sentimentos, fenômenos, manifestações conhecidas e que se pode manter sob controle, as crianças – por vezes – chamam de fantasmas. Medo, sentimento de abandono, ciúme, perdas, raiva, fúria, paixão, pena – tudo aquilo que parece banal para um adulto, são conceitos e sensações inéditas para um pequeno e por isso podem causar estranhamento. Para isso, a solução não é fechar a porta e impedir a criança de ter contato com o fantasma. “Na verdade, os fantasmas somem quando a gente os encara de frente e os convida para entrar. E é convivendo melhor com os nossos fantasmas e os dos outros que a gente cresce”, ensina Brenman. “Por isso, se o que a gente quer é uma criança bem educada – no sentido grego da palavra, de tirar de dentro dela o melhor que ela pode dar – a chave é oferecer a ela o melhor que a arte permite. Literatura politicamente incorreta, mas perfeita para crianças inteligentes, é um desses presentes que a gente deve dar”, conclui.

Um comentário:

Sonia Regina Reis Pegoretti disse...

Adorei a reportagem! Concordo em genero, número e grau! bjs
Sonia